O Chi na tradição cultural chinesa e na Escola da Via Interior – Art du Chi
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A ênfase na vida espiritual, mais do que nos aspectos materiais, é uma das principais diferenças entre a cultura
oriental e a ocidental. Vemos um exemplo disso na conservação da saúde, onde o ocidental destaca mais o corpo físico, enquanto o oriental tende a ocupar-se também da saúde mental e espiritual da pessoa.
No ocidente acredita-se que ao fortalecer o corpo físico também melhora a sua saúde geral. Dá-se relevo ao exercício e ao treino do corpo físico, mas desconhece-se o equilíbrio da energia interior (Chi), que também está relacionado com as emoções e o cultivo da paz espiritual.
As pessoas que fazem muito exercício físico e cujos corpos aparentam ser fortes não são necessariamente mais saudáveis nem mais felizes do que uma pessoa comum. Para gozar de uma saúde verdadeiramente boa é preciso ter um corpo saudável, uma mente saudável e, também, uma circulação de Chi constante e equilibrada. Segundo a medicina chinesa, muitas doenças são causadas por desequilíbrios da mente. Por exemplo, preocupações e nervosismo podem afetar o estômago ou danificar o baço. Medo e a preocupação podem alterar o funcionamento normal dos rins e da bexiga. Isso acontece porque a energia interna (a circulação de Chi) está em estreita relação com a mente. Para gozar de verdadeira saúde, é preciso ter um corpo físico são e uma mente tranquila e saudável. Saúde verdadeira é tanto interna quanto externa.
Quando alguém começa a praticar exercícios físicos para ficar em forma, costuma sempre preocupar-se em fortalecer os músculos. Segundo a acupuntura e a teoria do Chi-Kung, é necessário energizar o corpo, estimular a mente e aumentar a circulação de Chi. Se forem realizadas práticas adequadas naturalmente obter-se-á saúde física [1].
Na tradição cultural chinesa Chi (ou Qi) é a energia que preenche todo o universo. Para eles existem três poderes principais: Céu, a Terra e o Homem. O Céu possui o Chi do céu, e é o mais importante dos três. É formado pelas forças que os corpos celestes exercem sobre a terra. A Terra recebe a influência do primeiro e tem o Chi da terra. Quando o Chi da terra está em harmonia e equilíbrio as plantas e animais crescem. Na terra, cada indivíduo, animal ou planta possui o seu próprio campo de Chi que sempre busca o equilíbrio. Quando qualquer ser vivo perde o equilíbrio do Chi, adoece, morre e decompõe-se.
Na tradição chinesa também pode usar-se o termo Chi para toda a energia que é capaz de demonstrar força e poder, como a bioeletricidade, o magnetismo, o calor e a luz. Ao mesmo tempo pode expressar o estado energético de algo, em especial dos corpos vivos [2].
Um conceito semelhante pode ser encontrado em várias tradições, do Oriente, do Extremo Oriente e do Ocidente, sejam cristãs, muçulmanas, budistas, taoistas, bramânicas ou sikhs, e é expresso pelos termos Ruah em hebraico, Pneuma em grego, Spiritus em latim, Ruh em árabe, Chi (Qi) em chinês, Ki em japonês, Prana em sânscrito No cristianismo tem ligação com o “Espírito Santo” dos mistérios da Trindade [3].
O Chi preenche todo o espaço do universo, desde as coisas maiores às substâncias mais subtis. Mesmo sendo invisível existe e é a essência das coisas visíveis. Por isso os chineses dividem-no em duas formas da manifestação: o invisível e o visível, sendo duas faces da mesma coisa.
O Chi invisível é a forma primitiva, subtil, num maior estado de dispersão e continuamente em movimento. Não pode ser observado pelos nossos olhos. É invisível, mas existe.
O Chi visível é o resultado da sua reunião num estado relativamente denso e produz as diferentes coisas e formas.
Entre o invisível e o visível, entre espírito e matéria, o Chi não é fixo, estando em contínuo movimento e mudança, mas frequentemente não o sentimos nem observamos as suas mudanças.
O Chi é, portanto, ao mesmo tempo matéria e espírito, mas também o movimento entre os dois. A matéria e o espírito são reunidos pelo Chi.
Na China, o conceito do Chi não pertence especificamente a uma Escola ou época, tendo sido adaptado segundo as correntes e assimilado por cada um segundo a sua prática de saúde ou prática espiritual [4].
O Homem, como parte do universo e da natureza, é um produto do movimento de reunião e de dispersão do Chi. Este constitui e dá origem a todas as actividades da vida humana, quer sejam fisiológicas, físicas ou psíquicas. Desde o simples movimento do corpo às atividades mais complexas do cérebro, tudo é manifestação dos movimentos e das transformações do Chi.
Dizemos que o Homem está entre o Céu e a Terra. Deste modo é graças ao Chi que todos os seres se constituem, todas as manifestações da vida humana ressoam com a natureza – o céu, o Homem e a Terra – e se influenciam mutuamente.
Desta concepção do Universo surge uma noção do corpo baseado na unidade do corpo-espírito através do Chi. Isto abre um caminho de conhecimento de si próprio, elevando a consciência em direcção a uma nova dimensão de vida: por um lado, conferindo calma, serenidade e paz, por outro, eficácia, vontade realizadora e criadora.
O corpo material (Xing) é a manifestação do Chi visível. O espírito (Shen) – as actividades mentais, coração e consciência – é a manifestação do Chi invisível. Xing representa a estrutura corporal que inclui as várias partes do corpo humano, órgãos, os sistemas fisiológicos, os movimentos e transformações. Shen representa a vida nos seus aspectos mais subtis que se revela no pensamento, nas emoções, nas actividades psíquicas e na consciência. Estes dois níveis são ligados pelo Chi, num movimento em constante mudança entre o visível e o invisível. Xing e Shen são inseparáveis, e constituem uma unidade em que o homem procura associar-se estreitamente para encontrar a verdadeira fonte da vida, e todos os seus aspectos. Essa unidade é, portanto, a harmonia perfeita entre o corpo e o espírito, entre a forma e o funcionamento. O Homem é vivo graças ao espírito, o espírito vive através do corpo. A separação do corpo e do espírito origina a morte.
Esta concepção do Chi dá um optimismo ao ser na busca da autenticidade e oferece um verdadeiro sentido à existência. Assim, o Homem não está isolado. Pela sua maneira de viver e do seu estado de consciência cria sem cessar múltiplas relações com o que o rodeia e com o mundo natural.
O Chi é a primeira matéria que constitui o corpo humano e mantém as suas actividades vitais. Segundo a medicina chinesa, a função do Chi manifesta-se no corpo concretamente em três níveis: fisiológico, energético e psíquico [4].
Segundo esta concepção de que o Chi está presente nos seres vivos, desempenhando funções de suporte e manutenção da vida, ao qual se atribui um papel vivificador e ordenador dos sistemas biológicos, não deixa de ser curioso, se nos libertarmos dos conceitos científicos ocidentais, de considerar que pode haver aí uma ligação com a capacidade dos seres vivos cresceram e se desenvolverem, contrariando durante um tempo mais ou menos alargado, isto é, durante o seu tempo de vida, a inevitabilidade das leis da entropia.
A entropia é o princípio físico que rege a segunda lei da termodinâmica, e expressa a tendência natural das coisas de se aproximarem do estado caótico e de um nível energético mínimo. Assim, todo o sistema isolado e espontâneo, deixado em repouso, tende para a desorganização. Um organismo vivo tende a aproximar-se do perigoso estado de entropia máxima, que é a morte. Assim, a vida é uma luta permanente contra a entropia através da capacidade de incorporar a energia livre recebida de uma fonte externa (extraindo entropia negativa do ambiente), permitindo, deste modo, ao ser vivo manter o estado de organização interno [5]. Os processos metabólicos do organismo têm a capacidade de se livrar com sucesso de toda a entropia que ele não pode deixar de produzir por estar vivo, através de mecanismos de reposição constante do equilíbrio que o impede de atingir um nível de desorganização irreversível que conduzem à morte e à decomposição.
Depois destas considerações interessantes sobre o Chi vamos incidir a atenção sobre como a Escola da Via Interior - Art du Chi olha para este conceito.
Nas palavras do fundador da Escola [6] - “(…) eu não sei o que é o Chi. Ninguém sabe o que é, contudo, embora não seja fácil definir o Chi, é fácil senti-lo. Melhor, todos podem aprender a mobilizá-lo e depois dirigi-lo no seu corpo”. E é isso que caracteriza esta forma de energia: “O Chi obedece à vontade”. A exploração da energia vital (Chi) está no centro do nosso ensino. Esta atenção no Chi perpassa todas as nossas pesquisas e confere aos nossos movimentos corporais leveza, força e plenitude. A beleza e a harmonia que dela emanam fazem dela uma arte marcial interna única: um praticante da Art du Chi pode ser reconhecido à primeira vista.
Mobilizar o Chi produz efeitos específicos. Mas não devemos esquecer que o Chi é um todo não fracionável, isto é, seja qual for a técnica utilizada, tem sempre um efeito geral. A representação gráfica da circulação do Chi nos meridianos de acupunctura chinesa é útil à compreensão desta arte, mas dá uma ideia totalmente falsa da realidade do Chi, sugerindo uma corrente de circulação em canais. Não podemos ter uma representação exacta da circulação do Chi. “Isso não corresponde a nada do que temos conhecimento e experiência”. Se tentarmos representar mesmo assim a coisa, podemos imaginar as correntes marinhas no oceano. A água está em todo o lado. Contudo, existem zonas onde a circulação da água é mais forte e evidente. Deste modo, nesses locais, a corrente de água pode ser nitidamente percebida e posta objectivamente em evidência. Mas não é por isso que não existe água para além da corrente. Com o Chi sucede algo semelhante. O Chi existe em todo o lado, mas circula com mais intensidade em determinadas zonas.
“Não existe matéria que isole a circulação do Chi. O Chi não tem barreiras”. Atravessa seja qual for a blindagem como se não existisse um obstáculo. Não necessita de um condutor para se propagar. Somos nós que precisamos dele para o guiar num corpo sem tensões ao longo dum percurso que somos capazes de imaginar e perceber.
Todas as técnicas de Chi são interdependentes e nenhuma é mais importante que as outras. Deste modo, a progressão da nossa pesquisa faz-se globalmente.
Para trabalhar o Chi é necessário um “estado de corpo”, simplesmente um estado normal de corpo, liberto de tensões, disponível e capaz de trabalhar as suas articulações nos limites anatómicos normais. Esses requisitos mínimos são difíceis de encontrar no principiante, sendo por aí que começa o trabalho prático [6].
A perda da naturalidade e a instalação de desequilíbrios e desarmonias nos vários domínios da nossa existência, desde o corpo à mente, são obstáculos que devem ser trabalhados e corrigidos.
Essa transformação assenta, em grande medida na intenção, no estado de espírito, na concentração e na atenção, na adequada atitude do corpo, do gesto e do movimento. A atitude mental introduz um aspecto ritual que desempenha uma importância particular. Não existe qualquer sucesso no método “Quick and easy”. O trabalho sobre a postura corporal é uma condição indispensável para esse progresso. Na postura opera-se a fusão do que foi separado. A postura é a forma onde se realiza o “informal”. Existem princípios que presidem à manifestação da vida: o equilíbrio, a simetria e a harmonia. O Chi é o instrumento da percepção dessa harmonia. É um instrumento de exploração de nós próprios. A começar pelo nosso corpo, mas também da nossa realidade profunda como unidades de vida. Na vida reina uma harmonia perfeita. Pelo Chi percebemos essa harmonia original e comunicamos com os outros, com a natureza e com tudo o que vive. Essa comunicação faz-se a partir do interior, por qualquer coisa que liga o interior de todos os seres vivos. Essa coisa é o Chi [6].
Reconhecido como um dos mais subtis mestres da era moderna no Ocidente, Vlady Stévanovitch deixou a sua marca na prática do Tai Chi Chuang de diversas formas. A começar, pelo seu ensino, claro e aberto a todos, das técnicas de Chi tradicionalmente ligadas à prática do Tai Chi Chuang, mas que, tradicionalmente, eram mantidas em segredo para serem somente ensinadas a um grupo de alunos restrito. Depois, pela importância que deu à boa ventilação dos pulmões durante a sua prática, e a devolução das funções essenciais às pernas e mãos.
“A diferença é incomparável: ao ver um movimento realizado pelo Chi. Reconhece-se imediatamente. Quando vemos alunos da Escola da Via Interior, reconhecemos imediatamente o Método, reconhecemos imediatamente o estilo» (Michèle Stévanovitch, diretora da Escola Internacional da Via Interior, in blogue de Pierre Boogaerts).
Na Escola, corpo e mente são indissociáveis. A nossa abordagem está ancorada no corpo. É através dele que trabalhamos o Chi e alcançamos as camadas profundas do ser. A consciência alarga-se, a perceção da realidade transforma-se, a relação com o mundo altera-se.
“A harmonia e a beleza que emanam desta prática, a constante pesquisa e desenvolvimento do potencial interior que ela envolve fazem dela uma Arte. O ensino abstém-se de qualquer conotação religiosa e vira as costas ao espectáculo e à competição” (Michèle Stévanovitch, in blogue de Pierre Boogaerts).
Ao enfatizar o trabalho sobre o Chi, colocando-o no centro da prática, Vlady Stévanovitch teve um impacto profundo no Tai Chi Chuang. Como mestre do Chi, soube favorecer a escuta subtil de todo o corpo, decifrando as técnicas energéticas implementadas, mantendo certas características fundamentais do combate, próprias das artes marciais, e que conferem toda a sua nobreza ao equilíbrio e à força, mas depurando-a do caracter de competição e agressividade. Nisto ele permanece fiel ao espírito dos grandes mestres chineses do Chan, que estão na origem do Zen japonês.
“Graças ao Chi, o Tai Chi Chuang da Escola da Via Interior é praticado com grande suavidade e fluidez, sem nunca cair na lentidão. Surge uma impressão de grande leveza, mantendo uma ligação poderosa com a gravidade, o solo e o enraizamento. Os movimentos nunca são fechados sobre si mesmos, mas demonstram uma abertura e integração do praticante no seu meio” (Pierre Boogaerts, mestre de Chi e Tai Chi Chuang).
Para além desta clareza no ensino das técnicas de Chi que tradicionalmente permaneciam secretas no Tai Chi Chuang, Vlady Stévanovitch soube preservar toda a importância de uma boa ventilação dos pulmões durante a prática, ao contrário dos mestres chineses para quem o Tai Chi Chuang está ainda imbuído da arte do combate e por isso ignora a ventilação dos pulmões em favor de técnicas respiratórias específicas para o combate.
Vlady Stévanovitch também, e pelas mesmas razões, devolveu às pernas uma importância que elas não têm para a maioria dos mestres chineses: a de realizar, tal como os braços, movimentos de Tai Chi Chuang. Na Escola da Via Interior, todo o corpo – incluindo as pernas – fazem movimentos transportados pelo Chi. São suaves, leves e enraizados.
Finalmente, Vlady deu também às mãos uma escuta atenta, o que é geralmente característico dos grandes mestres curandeiros, enquanto, mais uma vez, os mestres chineses de Tai Chi Chuang as confinam a papéis ditados pelo combate.
“Passaram séculos e milénios, a moral e os centros de interesse das sociedades mudaram mais do que uma vez. As palavras ganharam outros significados, as línguas evoluíram. Os antigos Mestres sabiam que os textos escritos não levariam longe as suas mensagens e que, em qualquer caso, o Conhecimento não era transmissível através da escrita. Codificaram as suas mensagens em outro idioma. Na linguagem corporal. As posturas, atitudes, movimentos que nos legaram contêm o código genético do seu conhecimento. Os Mestres dos tempos antigos não nos deixaram revelações, mas a chave para as alcançarmos nós próprios” [6].
Referências bibliográficas:
[1] Jwing-Ming,Yang (1995). A Raiz do Chi-Kung Chinês. Segredos do treinamento em Chi-Kung. Editora Sírio.
[2] Jwing-Ming, Yang (2003). La respiracion embriónica: Meditacion Qigong. Editorial Sirio, S.A.
[3] Chiambretto, Michel (2022). Le souffle: Sous le sceau du secret. Editions Le Mercure Dauphinois.
[4] Ke Wen e Lyang, Zhang Ming (2019). La Voie du calme. Editions Le Courrier du Livre.
[5] Schrödinger, Erwin (1944). O que é a vida. Editora UNESP, Cambridge University Press.
[6] Stévanovitch, Vlady (1993) La Voie de l’énergie. Editions dangles.