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Tai Chi Chuan. Arte do movimento transcendente
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Os movimentos do Tai Chi apresentam particularidades próprias que os diferenciam de outras artes corporais. Se, por um lado, a continuidade e a fluidez dos movimentos são aspectos apreciados, capazes de transmitir sensações estéticas e de harmonia aos praticantes, assim como aos olhos dos observadores, por outro lado, a execução lenta dos movimentos é uma característica que provoca nos ocidentais alguma perplexidade, sendo, muitas vezes, um factor de desmotivação no prosseguimento da prática dos debutantes. Não é raro ouvir dizer que “tais movimentos são demasiado lentos”, ou que “preciso de mais actividade”, ou ainda que “os meus movimentos mais lentos são ainda demasiado rápidos quando comparados com os do professor”.
Neste ponto devemos fazer notar que as diferentes escolas de TaiChi podem apresentar, no domínio formal, diferenças mais ou menos acentuadas, onde a dinâmica e o ritmo da sequência dos movimentos é um de entre vários aspectos visíveis. Essas diferenças formais não podem ser dissociadas dos objectivos que cada escola persegue, pelo que o objecto e os métodos de ensino, materializados na execução da forma, deixam perceber a ênfase colocada neste(s) ou naquele(s) aspecto(s) do Tai Chi, podendo destacar-se de entre outros: a percepção interior e a manipulação do Chi, a saúde e o bem-estar, a melhoria das aptidões físicas, a competição desportiva, ou a defesa pessoal.
A dinâmica dos movimentos do Tai Chi ou, se quisermos, a lentidão ou a rapidez da sua prática, não pode ser dissociada do grau de “interioridade” com que é executada. No entanto, ao contrário do que poderia supor-se à primeira vista, a execução lenta dos movimentos, por si só, não confere essa qualidade. Somente quando se estabelece uma ligação com o centro (1) , a partir do qual todos os movimentos devem ter a sua origem, o praticante inicia verdadeiramente um caminho interior. Essa mudança recoloca o seu centro de gravidade físico em contacto com o centro vital e o ser profundo. A postura muda naturalmente e todo o seu Tai Chi se transforma. Os movimentos são mais firmes, relaxados e fluidos. O vazio mental abre agora as portas à restauração da naturalidade. A prática não pretende mais atingir um objectivo, mas um estado interior é alcançado, o qual é tanto mais profundo quanto menos é procurado.
A respiração é um acto fundamental da vida, associada aos mecanismos de suporte fisiológicos e à circulação do Chi . A respiração correcta e natural desenvolve-se em contacto com o centro. Os estímulos violentos, a agressividade e a inexistência de uma cultura dirigida para o desenvolvimento do ser que impera nas sociedades modernas, reforçam nos jovens desde cedo o desenvolvimento de um ego protector, qual armadura de guerra, e à medida que se fortalece, enfraquece o contacto com o centro e afasta o indivíduo da felicidade da infância. Os traumas, os desgostos, as responsabilidades e o stress da vida adulta determinam inexoravelmente um fosso com a Grande Vida, que já não é mais percebida, persistindo unicamente um vazio, uma sensação de emurchecimento interior, abafada vulgarmente com o abuso e a dependência de estimulantes, sejam eles químicos ou psicológicos (drogas, álcool, filmes de acção, luxúria, violência), ou mesmo hormonais (adrenalina). Por paradoxal que pareça, esses recursos são a única forma que conhecem para experimentar um pseudo-contacto com o centro, pela satisfação efémera que provocam. E de ressaca em ressaca verifica-se a destruição progressiva do corpo e da mente, esvaziando-se dos aspectos essenciais da vida. Nestas condições, a respiração é negativamente afectada tornando-se superficial e rápida, sendo efectuada com o auxílio da musculatura mais alta da caixa torácica. A subida do centro de gravidade não é só um sintoma físico da perda do centro físico e energético, mas também um sinal mais profundo da perda de contacto com o ser. As raízes profundas da sensação de vazio e de separação interior dificilmente são compreendidas pelo indivíduo, o que leva à procura de novos estímulos e à recidiva em novos ciclos intoxicantes.
A respiração correcta é a natural que provém do diafragma. Nos primeiros estágios da vida, o indivíduo apresenta uma respiração essencialmente diafragmática. Os contactos com os fundamentos da vida mantêm-se intactos, e o ser vive num estado próximo da felicidade. As tensões e a cristalização do ego provocam para além da subida do nível respiratório, uma atrofia progressiva do músculo diafragmático e um afastamento do centro. Nestas condições anormais, mas infelizmente generalizadas nas sociedades modernas, o indivíduo tem que realizar o caminho inverso, que passa inevitavelmente por um descondicionamento mental e pela reaprendizagem da naturalidade. A descontracção no centro é a chave mestra. O diafragma expande-se e a respiração torna-se progressivamente mais calma e profunda. Este caminho é um acto de libertação e tem um carácter activo, voluntário e consciente, diametralmente oposto do carácter passivo dos estados místicos.
A respiração correcta não é somente um acto de inalação e de exalação, mas uma participação de todo o ser no acto da vida, sendo assim uma expressão da totalidade do ser. Deste modo, a respiração e a postura não podem dela estar dissociadas. O Tai Chi como Via é, como refere Vlady (2), uma das melhores, para alcançar esse desiderato. A alquimia que se opera no cadinho do corpo, afecta todos os aspectos da manifestação individual, iniciando-se assim um processo de restauração da naturalidade. A centralização progressiva é um caminho de realização interior e de unificação, que conduzem à restauração das possibilidades do estado primordial.
A centralização aprofunda a sensibilidade para reconhecer as próprias tensões e os bloqueios do corpo, cujo reconhecimento é para os debutantes muitas vezes motivo de perplexidade, visto que, não raras vezes, os atribuem erradamente ao próprio trabalho desenvolvido no Tai Chi. Este equívoco pode conduzir à desmotivação e à desistência prematura dum trabalho que ainda agora iniciaram, rejeitando exactamente o caminho que lhes podia proporcionar a resolução desses problemas. Essas tensões que podem manifestar-se em forma de dor desconfortável, estavam já antes instaladas como resultado de anteriores desequilíbrios psico-físicos, mas até aí não percebidas. Esta auto-consciência é um processo de auto-conhecimento e deve ser canalizada para aumentar a capacidade de descontracção e o regresso ao Tantien. Contudo, da materialização da descontracção correcta não pode resultar um corpo amorfo, mas sim a manifestação da tensão correcta, ligada aos fundamentos da própria essência e da naturalidade e, por conseguinte, o abandono dos aspectos ligados ao carácter e ao ego.
A entrega no centro é um acto de confiança numa Vida Maior, cujo resultado desta ascese é a pacificação interior. Nessas condições, o indivíduo liberta-se do domínio do ego e da angústia por ele provocada, permitindo a expressão da essência e colocando-se em contacto com o ser profundo, num estado que o torna transparente à manifestação da própria divindade. O aprofundamento do caminho e o seu comprometimento ao ponto de fazer dele uma Via, fará do indivíduo um ser mais completo, testemunhando a transcendência em todos os actos e manifestações da vida. Estar no centro é então mais que tudo um verdadeiro acto de sacralização da vida, cujo templo é o próprio corpo. O aprofundamento da transcendência será então completo quando todo quotidiano for um exercício de centralidade.
Assim, um movimento de Tai Chi executado desde o interior não é meramente um acto mecânico muscular, mas um movimento transcendente, através da participação e da manifestação de todo o ser em harmonia com a natureza e os princípios da manifestação, designados na tradição extremo-oriental de Yin e Yang. A respectiva correspondência com os vários aspectos da manifestação, dá origem aos pares complementares como: vazio/cheio, passivo/activo, expiração/inspiração, abaixo/acima, feminino/masculino, contracção/expansão, sombra/luz, noite/dia, frio/calor, etc. A complementaridade, e não a oposição como muitas vezes é referido, deve-se ao facto de um não poder existir sem o outro, ou perspectivado de outro ângulo, um não poder prevalecer isolado, mas sucessivamente transformar-se no outro, de forma que cada aspecto do princípio transporta em si mesmo o gérmen do outro, conforme expressa a representação do símbolo do Yin-Yang, da tradição extremo-oriental. Neste nível de interioridade, um movimento ascensional dos braços não é um acto isolado e desligado, mas executado em uníssono com todos os outros aspectos que lhe são semelhantes, isto é, com a inspiração, a expansão, o cheio, o acima, e intimamente ligados aos vários aspectos corporais e energéticos. Deste modo, todos os aspectos da manifestação individual estão presentes no movimento em harmonia com aqueles princípios, pelo que agora se poderá perceber melhor que cada movimento seja naturalmente executado de forma lenta, pois é a expressão da manifestação daqueles princípios, onde a dinâmica e as características do movimento, a respiração e a circulação do Chi são alguns de entre outros aspectos da mesma coisa.
(1) O centro tem várias designações consoante as diferentes tradições. Na china é designado por Tantien ou Dantien, no Japão por Hara.
(2) Vlady Stévanovitch, “Les arts martiaux et le Tai Chi de la vie interieure”, colection bouteille a la mer, Belgique, 1987.
[Luís Souto, 2007]
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